domingo, 19 de julho de 2015

A menina que levitava




O dia amanhecia na casa. O cheiro do café na mesa posta pela mãe invadia todos os cômodos e tinha um quê de convidar a todos a sentar-se ao redor da mesa e degustar essa maravilha dos deuses. Há tempos Joana aprendera a amar essa dádiva. Admirava seus grãos, mas principalmente seu aroma. Pensava que ao sorver um gole de café, estava honrando de certa forma a todo o povo escravo que com seu suor, deixou a marca nessa bebida quente e escura. 


O barulho na casa já era presente e a luz invadia o quarto de Joana sem pedir licença. O pai estava no banheiro, podia-se escutar seu Floriano fazendo o som característico de quem escova os dentes com pressa. O advogado teria um dia cheio no escritório, com certeza. Dona Luiza arrumava o irmão menor, Pedro, este iria com o pai até a escola.


“O armário está com poeira, as teias de aranha estão impregnando o ventilador do teto e precisamos trocar de vez essas cortinas amareladas” – pensava alto Joana. A primeira vez que a menina acordara levitando e presa ao teto do seu quarto já tinha mais de um ano. De lá pra cá poucas foram as vezes que este fenômeno ocorrera. Não se sabe o que acontecia, mas Joana simplesmente amanhecia assim, presa ao teto do quarto, num ato desconcertante, absolutamente intrigante, anulando toda a lei da gravidade. 


Na primeira vez que isto ocorreu, foi o caçula que a viu e saiu gritando “mãe, corre aqui, Joana tá no teto”. E foi um deus-nos-acuda, a família apesar de católica, sempre visitou o centro espírita do bairro. “Isso é obsessão” disse o doutrinador espírita ao ver a menina presa ao teto. Mas invocaram o espírito que poderia estar provocando tal fenômeno e nada. Joana continuou presa ao teto. E da mesma forma que foi vista no alto, logo depois a encontraram no chão. Disse simplesmente “o teto precisa urgente de pintura nova” e suspirou. Joana agia com a maior naturalidade, como se sua natureza mais profunda fosse o ato de levitar.


Tempos se passaram. Psiquiatras, psicólogos, padres exorcistas e até um xamã acupunturista! Garrafadas a menina tomou foi de tudo quanto é tipo. Até garrafada de pena de galinha com mastruz lhe enfiaram goela abaixo. E nada. Misteriosamente Joana continuava a amanhecer de vez em quando levitando, presa ao teto. E não descia enquanto estava sendo observada. Nunca a viram no momento em que subia e muito menos no que descia. Quando se davam conta ela já estava no alto e da mesma maneira logo após estava no chão. E não adiantava questioná-la sobre o fenômeno. Para ela era super natural. Mudava de assunto na hora.


Joana cresceu. Fez-se moça. E todos acostumaram com o fenômeno. Nem mais ligavam. Ao entrarem no quarto e vê-la no teto, já fechavam a porta. Sem palavras.


Essa noite antes de dormir Joana vai fazer novamente o seu ritual que a persegue desde criança. Amanhã de manhã provavelmente estará no teto novamente. O ritual consiste em abrir aleatoriamente alguma página de Perto do Coração Selvagem, de Clarice Lispector e lê-la de uma só vez. Depois Joana coloca o livro sob o travesseiro. Nunca ninguém percebeu. 

A bruxa Clarice sempre enfeitiçando almas.













Dona Crise



Quando dona Crise toca a campainha corro abrir a porta. Há quem tenha medo dessa velha. Dizem até que é afeita ao péssimo hábito de furtar coisas alheias. Eu, quanto a isso, nada posso dizer, a não ser que, desde que dona Crise passou a fazer faxinas na minha casa, não tenho do que reclamar. Não perco a chance de trocar um dedinho de prosa com dona Crise.

Tomo café com a velha sempre, coitadinha. 

Dona Crise mora longe e não traz sua marmitinha, segundo a própria, pois não dá tempo, já que antes de bater na porta da minha casa, já passou por muitas outras: ela não pára a danada... então eu mesmo faço um café com bolo e a gente senta na sala, lógico, o lugar principal da casa e batemos um papo legal, parecemos amigos de infância.

Não bem termina de tomar o café, dona Crise, que não perde tempo, vai remexendo com tudo, abre todas as gavetas, que costumam estar cheias de traças e quinquilharias que a gente adora guardar, né? Posso dizer que não fica nada sem que a anciã coloque sua mão.  Dona Crise até muda os móveis de lugar e quando está muito atacada, a velha incansável até pinta as paredes!

Uma coisa é certa, a casa fica brilhando!!!

Como é mesmo necessário o serviço prestado por dona Crise. 

Dona Certeza

Esse é o quintal da dona Certeza.  
Reparem como a grama está alta e feia. 
Mas dona Certeza construiu um muro cinza e 
rabugento e ninguém mais entra nesse feio quintal onde
guarda o seu minúsculo mundo... suas "coisinhas".
No quintal de dona Certeza tem espaço até para seu "deus pessoal", 
afinal de contas, lógico, o "deus pessoal" de D. Certeza é melhor e 
mais poderoso que todos os demais deuses.
Mas no fundo o que dona Certeza tem vontade mesmo é de pegar uma marreta 
e quebrar o muro todo... estraçalhar o cimento... tijolo por tijolo...
e ir brincar na amplidão de um
mundo sem muros.... 

          ...como é tolinha a dona Certeza.

domingo, 12 de julho de 2015

A caixa de vidro de nossas ilusões

Joana chorava atônita...
Seu choro era o grito na garganta de
Quem se sente presa numa caixa de vidro....
Joana tentava agonizantemente quebrar
A redoma com seu choro... vibrar o seu choro
até romper em cacos a caixa... Joana já não
tinha mãos e braços livres... estes estavam
presos por cordas invisíveis...

Joana não estava só... haviam outros
na caixa... mas estes pareciam não a ver...
Dançavam hipnóticamente ao som
de tambores interiores, absortos em
deleites hedonistas travestidos do
mais puro êxtase espiritual

Fora da caixa alguns seres olhavam
a agonia de Joana... e tentavam transmitir-lhe
serenidade... sete seres  cercavam a caixa como guardiões.
Eles estavam com Joana... se viam em Joana como
se fosse com eles mesmos o ocorrido...


Como ela fora parar ali? Que mãos invisíveis
foram estas capazes de ali a colocar?
Joana como que do nada despertara ali... naquela situação
Complexa...
Juntar-se a dança hipnótica ou quebrar o vidro?
Mas como quebrar?
Se tivesse pelo menos um machado... um machado
justo e incólume onde pudesse apoiar seu pulso
e numa firmeza que é da ordem do sagrado estilhaçar
de uma só vez a caixa de vidro.....

Joana volta-se para dentro de si.... o choro cessa....
Respira.... sorri internamente.... a dança hipnótica
já não mais produz seu efeito... 
todos agora estavam sentados em silêncio...
Joana convertera-se no próprio machado....
um machado cujo cabo de madeira traz talhada
a palavra honestidade.
A caixa havia sido rompida.
E os céus tinham descido.