"...erguerei dentro de mim o que sou um dia, a um gesto meu minhas vagas se levantarão poderosas, água pura submergindo a dúvida, a consciência, eu serei forte como a alma de um animal..." Clarice Lispector, in 'Perto do Coração Selvagem'
Dona alma, é o seguinte,
vou mandar uma direta pra senhora. Que história é essa de querer me controlar,
me segurar, me amansar, me dominar, me ensinar, me doutrinar, me castrar? A
senhora não sabe de nada! A senhora vem lá do alto, de onde a senhora chama de
planos de luz, planos celestiais e outros desses nomes bonitos que a senhora
desencanta não sei de onde, pra tentar me impressionar e se mostrar indiferente
e superior a mim! Mas olha, eu rio, na verdade eu gargalho da sua pretensão,
sabe... a senhora se diz tão sábia mas não tem a capacidade de me compreender. Eu,
o bicho, possuo a sabedoria dos tempos, sou forjado a sangue e ossos, pele e
tendões, em mim brotam os odores do tempo e os suores dos que passaram e se
foram... eu lhe recebi em minhas entranhas dona alma durante tantas e tantas
vezes que a senhora desceu do seu trono lá do alto... acompanhei suas lutas
todas... tentei lhe mostrar como são as coisas... eu não sou teimoso como a
senhora espalha por aí, a senhora que é teimosa e não aprende a ver a inocência
de minhas pulsões. Eu farejo, dona alma, eu escuto cada ruído nos cantos
escuros, onde a senhora tem medo de estar... meu rugido é pura alegria. Meu
canto é selvagem dona alma e ser selvagem é ser como um rio de fluxo contínuo
no coração da terra. Como a senhora acha que sobrevivi todos esses tempos e tempos?
Me amando, dona alma! Me acariciando! Tendo
prazer!!! Desculpa, desculpa, fica calminha, amiga... amiga... calma... sempre
que eu toco nessa palavra proibida... prazer... a senhora fica assim... tensa,
nervosa, irritada... e aí como revanche quer me sacrificar, negar minha alegria
sensual e natural... mas sabe que no fundo eu sinto compaixão da senhora,
sério, compaixão... pois a senhora não está pronta... a senhora é um projeto...
um devir, um vir a ser, um projeto para o futuro. Eu não! Eu tô pronto! Olha
minhas garras, minhas unhas, olha minhas presas! Eu te estraçalho como quem
rasga a vida! Eu sou agora! Eu sou o suor do presente! Eu tô vivo dona alma! Eu
tô vivo!