O dia amanhecia na casa. O cheiro do café na mesa posta pela mãe invadia todos os cômodos e tinha um quê de convidar a todos a sentar-se ao redor da mesa e degustar essa maravilha dos deuses. Há tempos Joana aprendera a amar essa dádiva. Admirava seus grãos, mas principalmente seu aroma. Pensava que ao sorver um gole de café, estava honrando de certa forma a todo o povo escravo que com seu suor, deixou a marca nessa bebida quente e escura.
O barulho na casa já era presente e a luz invadia o quarto de Joana sem pedir licença. O pai estava no banheiro, podia-se escutar seu Floriano fazendo o som característico de quem escova os dentes com pressa. O advogado teria um dia cheio no escritório, com certeza. Dona Luiza arrumava o irmão menor, Pedro, este iria com o pai até a escola.
“O armário está com poeira, as teias de aranha estão impregnando o ventilador do teto e precisamos trocar de vez essas cortinas amareladas” – pensava alto Joana. A primeira vez que a menina acordara levitando e presa ao teto do seu quarto já tinha mais de um ano. De lá pra cá poucas foram as vezes que este fenômeno ocorrera. Não se sabe o que acontecia, mas Joana simplesmente amanhecia assim, presa ao teto do quarto, num ato desconcertante, absolutamente intrigante, anulando toda a lei da gravidade.
Na primeira vez que isto ocorreu, foi o caçula que a viu e saiu gritando “mãe, corre aqui, Joana tá no teto”. E foi um deus-nos-acuda, a família apesar de católica, sempre visitou o centro espírita do bairro. “Isso é obsessão” disse o doutrinador espírita ao ver a menina presa ao teto. Mas invocaram o espírito que poderia estar provocando tal fenômeno e nada. Joana continuou presa ao teto. E da mesma forma que foi vista no alto, logo depois a encontraram no chão. Disse simplesmente “o teto precisa urgente de pintura nova” e suspirou. Joana agia com a maior naturalidade, como se sua natureza mais profunda fosse o ato de levitar.
Tempos se passaram. Psiquiatras, psicólogos, padres exorcistas e até um xamã acupunturista! Garrafadas a menina tomou foi de tudo quanto é tipo. Até garrafada de pena de galinha com mastruz lhe enfiaram goela abaixo. E nada. Misteriosamente Joana continuava a amanhecer de vez em quando levitando, presa ao teto. E não descia enquanto estava sendo observada. Nunca a viram no momento em que subia e muito menos no que descia. Quando se davam conta ela já estava no alto e da mesma maneira logo após estava no chão. E não adiantava questioná-la sobre o fenômeno. Para ela era super natural. Mudava de assunto na hora.
Joana cresceu. Fez-se moça. E todos acostumaram com o fenômeno. Nem mais ligavam. Ao entrarem no quarto e vê-la no teto, já fechavam a porta. Sem palavras.
Essa noite antes de dormir Joana vai fazer novamente o seu ritual que a persegue desde criança. Amanhã de manhã provavelmente estará no teto novamente. O ritual consiste em abrir aleatoriamente alguma página de Perto do Coração Selvagem, de Clarice Lispector e lê-la de uma só vez. Depois Joana coloca o livro sob o travesseiro. Nunca ninguém percebeu.
A bruxa Clarice sempre enfeitiçando almas.
Adorei pimo!!! Parabens pela criação do blog.
ResponderExcluirMeodeos! Poxa irmao vc escreve muito bem! Que conto gostoso ! Dei uma gargalhada boa.
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